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De há muito que os catálogos de exposições deixaram de ser meros inventários das peças mostradas, para se converterem em bibliografia fundamental acerca do assunto que tratam. Não admira. 

Por um lado, o discurso museológico no campo da arte e da arquitectura, passou da exibição da peça rara e valiosa, à performance ou à narrativa científica transcrita em modo didáctico-pedagógico. Por outro, se a relevância de um tema se pode medir pela sua capacidade de gerar grandes exposições, estas têm a capacidade de precipitar a produção de conhecimento novo ou de novas sínteses sobre o que pretendem comunicar. 

O catálogo da exposição inaugurada na Ala Poente do Terreiro do Paço em 18 de Junho de 2008, comemorando os 250 anos do plano de reconstrução da Baixa, ilustra estas premissas. 

Compõe-se de duas partes. A primeira, “O Processo da Baixa”, trata o tema da Baixa pombalina do ponto de vista da história do urbanismo, com novidade de conteúdo e de aproximação crítica; a segunda, “Intenções/Novos Planos”, prospectiva relativamente ao sítio, é assinada pelos responsáveis dos Pelouros do Urbanismo e da Cultura da Câmara Municipal de Lisboa (CML), promotores da iniciativa. O “Apêndice Documental”, utilíssimo, que fecha o volume impresso é da responsabilidade do Arquivo Municipal e refere, sumariamente, conteúdos da documentação dos reinados de João V e José I à guarda da CML, relevantes para o tema do urbanismo de Lisboa.

A publicação inclui um DVD que fixa o conteúdo integral da exposição, acto efémero por natureza: maqueta e organização temática, imagens de todas as peças mostradas e respectivas legendas, texto, vídeos. Está ainda prevista uma edição da totalidade da obra em língua inglesa. 

Insistirei na 1ª Parte do volume impresso. “O Processo da Baixa” abre com um texto de Walter Rossa, um dos coordenadores da exposição-catálogo, especialista em história do urbanismo português, particularmente no que respeita ao século XVIII.

Trata-se de um texto ancorado em ideias fortes como a do Plano de 1758 entendido como o 1º Plano de Lisboa – o texto chama-se “No 1º Plano” (p. 25-81) –, na medida em que se dirigiu à totalidade do espaço urbano, segundo uma aproximação conceptual e técnica que foi “competente” e que pode considerar-se moderna. O autor, para quem a invenção do urbanismo atribuída a Cerdà é mera convenção disciplinar (nota 81), explicita o seu objectivo: a consciencialização e reconhecimento nacionais e internacionais da validade e da modernidade do Plano de renovação do centro de Lisboa de 1758, numa operação que se entendeu ao seu hinterland (embora com resultados menos convincentes). Para tanto, Rossa procede a uma releitura crítica e actualizada da bibliografia essencial produzida sobre o assunto, desde 1758 até 2007. E atravessa os temas da recepção crítica do pombalismo arquitectónico e urbano; das experiências estrangeiras afins (Londres, Rennes, Catania); da justa graduação de Iluminismo francês e de engenharia militar portuguesa no Plano da Baixa; do peso da condição de capital imperial e marítima no desenho da nova Lisboa – desde logo, no Terreiro do Paço; do discurso do método de Manuel da Maia; do diálogo que o Plano mantém com o passado urbano da cidade; do obscuro processo de decisão que conduziu dos rascunhos preparatórios à planta-síntese de Santos e Mardel; à lembrança do terramoto social e político pombalino, de que o terramoto urbanístico foi uma das expressões. Todos os temas, dir-se-ia.

Cláudio Monteiro, especialista em direito do urbanismo, amplia esta última perspectiva sobre o Plano da Baixa através de um estudo inovador sobre os instrumentos jurídicos da sua aplicação a que chamou: “Escrever direito por linhas rectas” (p. 82-125). Uma das conclusões é de estoiro: “Foi preciso esperar pela execução dos Távoras para se dar início à execução do Plano...” (p. 95). Esta é efectivamente lançada a partir da promulgação de uma peça legislativa menos citada, o Alvará de 15 de Junho de 1759 relativo à regulação dos direitos privados no contexto da reconstrução. De facto, o solo urbano da Baixa passou por um processo de nacionalização avant la lettre e de redistribuição, de acordo com o novo desenho, em que os seus detentores mantiveram apenas o direito de preferência sobre as áreas, deslocalizadas, dos seus antigos lotes – condicionado, como se sabe, à construção em conformidade com o Plano num prazo de cinco anos. Tudo se passou como se a execução do Plano da Baixa tivesse por si mesma suscitado a liberalização do solo urbano do centro de Lisboa, que, no culminar do processo, nas décadas de 70 e 80 do século XVIII, é em grande parte detido em regime de propriedade plena. Monteiro elucida todo o processo através da análise minuciosa da abundante produção jurídica pombalina, que aqui se perfila como a matriz do moderno direito do urbanismo português. E que chega, com Manuel da Maia, a dispositivos tão sofisticados como o da perequação compensatória, garante da equidade na distribuição de mais-valias e de ónus em operações urbanas da natureza da reconstrução pombalina. A execução do Plano “de Lisboa” irá favorecer uma poderosa classe mercantil emergente e antecipar a liberalização do direito de propriedade, causa determinante das revoluções políticas que algumas décadas depois haviam de varrer a Europa. Política, direito e urbanismo (aqui, em contexto histórico) esclarecem-se mutuamente, pela via insuficientemente praticada da investigação transdisciplinar.

O processo da Baixa prolonga-se até ao início do século XX com o texto de Raquel Henriques da Silva “Lisboa reconstruída e ampliada (1758-1903)” (p. 126-167). Trata-se de um verdadeiro compêndio de história urbana da cidade, traçado com qualidade literária – quase pictórica, visual – e científica, e que, pela primeira vez, reúne numa só peça os conteúdos essenciais, devidamente actualizados, da extensa bibliografia da própria autora sobre o tema. De facto, cabe quase inteiramente a Raquel Henriques da Silva a descoberta e o exercício da investigação sobre a história urbana (e urbanística) da Lisboa pós-pombalina, romântica e industrial (L. Benevolo), num percurso retrospectivo que a levou da “invenção” da Lisboa de Ressano Garcia ao urbanismo da cidade do fim do Ancien Régime e durante os primeiros três quartos do século XIX. 

O conjunto dos quatro ensaios a propósito do Plano da Baixa encerra com o texto de Ana Tostões, co-comissária da exposição, “Precursores do urbanismo e da arquitectura modernos” (p. 168-230). Esta sua reflexão sobre o tema, apoiada, como as dos restantes autores, na mais recente investigação disponível, sinaliza e descodifica as marcações modernas – executadas ou apenas projectadas – no tecido da Baixa pombalina e envolvente imediata, à luz dos debates nacionais e das grandes correntes da arquitectura e do urbanismo internacionais. De Carlos Ramos a Gonçalo Byrne e Siza Vieira, de De Gröer a Aldo Rossi, a história da Baixa pombalina ainda não acabou.|

 

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Destaco, a propósito, os três momentos-chave do percurso da autora enquanto investigadora da história urbana de Lisboa: As Avenidas Novas, 1900-1930. Lisboa : Universidade Nova de Lisboa, 1984. Dissertação de mestrado; Lisboa de Frederico Ressano Garcia. Lisboa : Câmara Municipal de Lisboa, 1989. Catálogo de exposição (coord.); Lisboa romântica: urbanismo e arquitectura, 1777-1874. Lisboa : Universidade Nova de Lisboa, 1997. Dissertação de doutoramento.

 


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